Preservar património arquitetónico português é cuidar da imagem e da memória que temos de nós próprios. A reabilitação urbana há muito que tem a missão de regenerar as cidades, mantendo os traços da sua história. E, agora, há uma nova tendência a crescer em Portugal: a reabilitação de casas tradicionais portuguesas, sobretudo, no interior do país. A grande força motriz da sua chegada foi mesmo a pandemia, que está a mudar a forma como as famílias vivem e valorizam o interior e exterior das suas casas. Mas como é que tudo isto está a fluir? O idealista/news foi procurar respostas junto de profissionais que participam ativamente na transformação destas casas e na reabilitação das cidades.

Reabilitação de casas é uma tendência
Renovação em Lagos / Associated Architects Partnership

A reabilitação urbana dá vida às cidades

reabilitação de edifícios não é uma prática nova, sempre fez parte da história das cidades e do país. Mas teve vários anos adormecida. “Durante muitos anos, em Portugal construiu-se pouco e historicamente os portugueses não tinham por hábito remodelar ou reabilitar imóveis”, disse João Carvalho, cofundador da Melom na entrevista por escrito. Só depois da crise imobiliária e financeira de 2008 é que a reabilitação urbana começou a florescer no país. Hoje, “há claramente a tendência de reabilitar, esta surge sobretudo da crise imobiliária e da necessidade de explorar novos mercados, de reocupar um território devoluto e frágil, mas com grande potencial e sedente de intervenção”, assumem Rui Vargas e Pedro Miranda, arquitetos da Associated Architects Partnership (AAP).

Melhorar qualidade das casas
Renovação em Lagos / Associated Architects Partnership

E o que mudou até então? “Atualmente, prevalece uma certa nostalgia que nos impele à conservação”, afirma João Luís Ferreira, arquiteto na Promontorio Arquitectos, em declarações ao idealista/news. E há também “novas legislações que objetivam a proteção do património e a sua preservação”, recordam os arquitetos Rui Vargas e Pedro Miranda. Além disso, “os princípios de reabilitação têm vindo a ser alterados tanto para melhor responder às exigências dos usos atuais, como para preservar exemplares ou conjuntos de edifícios”, considera Tiago Lopes, diretor de arte da Urban Obras Portugal. E como se não bastasse, as transformações no setor aceleraram ainda mais durante a crise pandémica, já que esta impulsionou “uma mudança de hábitos de vida, responsável não só por uma deslocalização das pessoas dos centros e litoral para outras regiões, mas também em melhorias significativas nas habitações próprias”, sublinhou João Carvalho, da Melom.

“A importância do património arquitetónico é a importância que os povos se derem a si próprios”, afirma João Luís Ferreira, da Promontorio Arquitectos

Com estas intervenções, as cidades ganharam uma nova vida. E as vantagens da reabilitação urbana são muitas. Desde logo, “reabilitar edificado é uma forma eficiente de melhorar a cidade e o território”, argumenta o diretor de arte da Urban Obras Portugal. Isto porque permite controlar a expansão das cidades, transformar as estruturas existentes para usos necessários aos dias de hoje e ainda prevenir a degradação acelerada e até irreversível do património edificado. É uma forma de valorizar e preservar o património arquitetónico que “é o espelho da nossa complexa identidade como cidadãos, como povo”, tal como diz o arquiteto João Luís Ferreira.

Reabilitar solar de família
Reabilitação do Solar em Fataunços, Vouzela / Melom

Contudo, nem tudo tem corrido bem. Desde 2008 que se assiste a uma reabilitação “algo descontrolada” da malha urbana, “visando interesses que promovem fenómenos como a gentrificação e descaracterização de bairros com modos de habitar consolidados, que não conseguem resistir a estas novas estratégias de recuperação”, recordam os arquitetos da AAP. E, depois, ao que se “chama reabilitação é, em muitos casos, só preservação das fachadas principais”, garante o arquiteto na Promontorio Arquitectos. Estes tipos de intervenções deixam de fora a reabilitação do interior que “em si mesmo é tão relevante como o exterior, porque corresponde a um certo modo coerente de habitar o espaço”. O que acontece muitas vezes é que esta intervenção desigual “descaracteriza o conjunto”, conclui João Luís Ferreira.

Reabilitação urbana no Porto
Reabilitação de moradia no Porto / Urban Obras Portugal

Casas tradicionais portuguesas – uma nova tendência

Dentro da malha urbana e rural, há várias casas tradicionais portuguesas que têm vindo  a ser reabilitadas. “A casa tradicional portuguesa tem que se lhe diga”, comenta o arquiteto da Promontorio Arquitectos, sublinhando que “preservá-la é muito importante, mas implica primeiro estudá-la e compreendê-la”.

E, agora, “temos assistido a um aumento gradual de reabilitações de imóveis ‘de aldeia’ que estavam devolutos e que ganharam uma nova vida com a pandemia”, garante o cofundador da Melom. Esta tendência surge porque, segundo o próprio, as pessoas queriam refugiar-se dos grandes aglomerados populacionais num primeiro momento e, depois, porque o “teletrabalho veio contribuir para uma nova geração de nómadas que privilegiam o contacto com a natureza e o ar livre em vez de uma vida citadina”, explica.

 

Obras em casa
Renovação em Lagos / Associated Architects Partnership

A verdade é que com a pandemia a importância da casa para as famílias está a mudar. E há já vários sinais que registam essa transformação. O vasto tempo passado em casa levou as famílias a valorizar cada espaço interior, as zonas de reunião familiar (salas de estar e jantar), o conforto do lar em termos térmicos e os espaços exteriores, como varandas, terraços e jardins. E “tornaram-se evidentes diversas lacunas que se pretendem agora resolver, seja através de reformulação da atual ou de outros critérios na escolha ou conceção da futura”, comenta o diretor de arte da Urban Obras Portugal. O cenário convida, portanto, à remodelação e à reabilitação das habitações.

 

É por tudo isto que, hoje, existe “ um potencial enorme para a reabilitação de casas no interior de Portugal”, acredita João Carvalho, que admite que esta “é uma solução ‘win-win’, pois as pessoas ganham qualidade de vida, o ambiente ganha pela descentralização de pessoas e ainda se geram novos habitantes nas regiões menos povoadas”.

“Quando intervimos no campo, tentamos de certa forma potenciar a relação com a natureza circundante, com a luz natural própria do lugar”
Arquitetos Rui Vargas e Pedro Miranda.

 

Mas reabilitar casas no campo e na cidade não é igual. As localizações geográficas são distintas – é certo – e os modos de habitar são diferentes. Na cidade a habitação é encarada como um refúgio, como uma vivência mais voltada para o interior, sem “descurar, no entanto, os elementos marcantes da paisagem urbana”. Já no campo é potenciada “a relação com a natureza circundante, com a luz natural própria do lugar”, contam os arquitetos Rui Vargas e Pedro Miranda.

Além disso, há que ter preocupações acrescidas com a amplitude térmica de uma casa no campo, isto porque estas habitações costumam ser bem mais frias no inverno, acrescenta João Carvalho, da Melom. A verdade é que tanto num lado como no outro “é importante perceber as características do local e nele integrar as exigências do programa, da vida”, resume Tiago Lopes, da Urban Obras.

Remodelação de casas
Reabilitação do Solar em Fataunços, Vouzela / Melom

Reabilitar casas de norte a sul do país

Do Algarve ao Minho ou a Trás-os-Montes, há muitas casas tradicionais portuguesas prontas a reabilitar e a serem reabitadas. Os profissionais entrevistados deixaram-se envolver em várias obras de reabilitação ao longo das suas carreiras. E partilham com o idealista/news os projetos que mais os marcaram.

renovação de uma casa em Lagos foi o projeto de reabilitação destacado por Rui Vargas e Pedro Miranda, os dois arquitetos da AAP. Esta casa tradicional portuguesa apresentava “um ambiente espacial demasiado compartimentado e sem qualidade de habitabilidade”, dizem. Mas conseguiram dar uma nova vida a esta habitação “mantendo elementos construtivos e recuperando outros, de uma forma simples e de baixo custo”. Transformaram um pequeno T3, num T1 (embora o quarto partilhe o mesmo teto com a sala) que conta com um pequeno mezanino multifuncional, uma solução encontrada para otimizar o espaço interior.

Reabilitar e remodelar casas
Pedro Miranda e Rui Vargas, arquitetos da AAP | Renovação em Lagos / Associated Architects Partnership

reabilitação do monte alentejano, perto de Estremoz, foi um dos projetos que mais marcou João Luís Ferreira, da Promontorio Arquitetos. No passado, esta casa servia, sobretudo, de abrigo de pastores. E a sua renovação consistiu em “introduzir funcionalidades nos espaços sem os descaracterizar, nomeadamente, as casas de banho e a cozinha, e aproveitou um dos espaços com chaminé”, conta na entrevista. Foi necessário ampliar a área num piso superior e, no final, foi conseguida uma “harmonia e o equilíbrio geral da casa tanto no exterior como no interior e, sobretudo, preservou-se a sua relação com a envolvente e a paisagem”.

Obras nas casas em Portugal
João Luís Ferreira, arquiteto na Promontorio Arquitectos | Reabilitação do monte alentejano / Promontorio Arquitectos

A transformação de um solar de família em Fataunços, Vouzela, foi o projeto que João Carvalho, da Melom, escolheu partilhar com o idealista/news. Tratou-se da “reabilitação de uma habitação secular com padrões de conforto dos dias de hoje”. “Creio que foi um belíssimo trabalho e que contribuiu para a requalificação de património que não sendo qualificado é de interesse”, disse ainda.

Reabilitação urbana em Portugal
João Carvalho, cofundador da Melom | Reabilitação do Solar em Fataunços, Vouzela / Melom

O trabalho de remodelação e ampliação de uma moradia adaptada para turismo no centro do Porto é o projeto de eleição para Tiago Lopes, da Urban Obras Portugal. Foi entre 2017 e 2019 que a sua equipa colocou as mãos nesta obra que “levantou enormes desafios pela fisionomia do edificado, que tinha já sido resultado de inúmeras alterações e modificações sobre uma base do século XIX”, conta. A questão sobre o que se devia preservar e o que devia eliminar pairou durante o projeto. E a “resposta surgiu naturalmente dos princípios orientadores do projeto, da nova função e da sua relação com a cidade”, explicam.

Casas reabilitadas em Portugal
Reabilitação de moradia no Porto / Urban Obras Portugal

Os desafios de reabilitar casas em Portugal

A importância do existente

Reabilitar casas é bem diferente de construir habitações de raiz. E uma das principais diferenças tem que ver com a própria arquitetura existente. “A casa que se reabilita é a sua própria matéria-prima (…) uma reabilitação obriga a mergulhar no existente e no que está feito e conforme está feito. É uma abordagem mais concreta e mais condicionada”, explica o arquiteto João Luís Ferreira. “A verdade é que na reabilitação encontramos mais condicionantes ao projeto, desde logo pela presença de uma estrutura que será mantida, adaptada e reforçada”, concorda o diretor de arte da Urban Obras Portugal.

É por isso que o processo de reabilitação urbana envolve uma “avaliação mais exaustiva de uma pré-existência, o que inevitavelmente torna a evolução mais difícil e requer, eventualmente, um maior número de fases de projeto e questões legais, com as quais temos que lidar, muitas vezes antes sequer de fazermos o primeiro traço”, explicam os arquitetos Rui Vargas e Pedro Miranda. Muitas vezes, a estrutura existente pode representar desafios à sua manutenção, à incorporação de novas áreas, à adaptação a novas funções e até mesmo na inclusão de estruturas de conforto importantes no dia a dia, como a climatização e garagem.

Todos estes aspetos tornam o desenrolar de um projeto de reabilitação imprevisível e gerir as expectativas dos clientes nem sempre é fácil. “O principal desafio é a imprevisibilidade, nunca sabemos na fase de orçamentação tudo o que pode acontecer no decurso de uma obra de reabilitação, este fator por si só condiciona não só o preço final como também o próprio cronograma da obra”, comenta o cofundador da Melom.

Reabilitação de casas em Portugal
Reabilitação do Solar em Fataunços, Vouzela / Melom

Preços das obras a subir e reabilitações a aumentar

É por esses motivos que que escolher os parceiros da obra é tão importante. Ainda mais num cenário em que os preços das remodelações e reabilitações estão a ficar mais caros em Portugal. Esta é a consequência do aumento da procura por serviços de reabilitação e remodelação, combinado com a subida dos preços dos materiais de construção e da falta de mão de obra qualificada.

Ainda assim, “os preços de construção e reabilitação que têm contribuído para a valorização do imobiliário”, comenta o cofundado da Melom na mesma entrevista. “Hoje quando compramos uma casa usada deveremos estar atentos não só ao seu custo de aquisição, mas também o da sua remodelação”, alerta, isto porque na Melom “já tivemos casos em que o valor de reabilitação superou o custo de aquisição e, por isso, é muito importante que quando pensamos em comprar uma casa que necessite de obras tenhamos um orçamento realista para a sua remodelação”. Também os arquitetos da AAP sublinham que “reabilitar, por norma, tem um custo efetivamente mais elevado do que uma construção nova, sobretudo pela duração dos tempos de trabalho e pelas técnicas e métodos construtivos que, por vezes, requerem mão de obra especializada”.

Casas reabilitadas em Portugal
Reabilitação de moradia no Porto / Urban Obras Portugal

Sustentabilidade é o caminho do futuro

Além de tudo isto, surgem também os desafios do futuro voltados para reabilitação sustentável. “É urgente considerar a durabilidade das soluções, a pegada ecológica da produção e do transporte dos materiais e equipamentos”, considera o diretor de arte da Urban Obras Portugal. O que é certo é que adotar os critérios de sustentabilidade deverá aumentar os custos imediatos da obra, embora sejam compensados ao longo da vida do edifício. “Entendemos que um edifico ecológico e sustentável é aquele que melhor faz gestão dos recursos, aquele que foi construído com os materiais mais eficientes e que menos energia consome na sua produção”, dizem os arquitetos da AAP. E a verdade é que “a sustentabilidade é um tema central porque toda a indústria se vai renovar e reinventar” no futuro, conclui o arquiteto João Luís Ferreira.

 

Fonte: Idealista News